A chamada de Paulo
O chamado de Deus veio a Paulo de forma tão clara e
específica que não lhe foi possível confundi-lo, enquanto jazia deitado no chão
cego pela luz celestial. Ananias também lhe comunicou a mensagem que havia
recebido de Deus: "O Deus de nossos
pais de antemão te escolheu para conheceres a sua vontade, ver o Justo e ouvir
uma voz da sua própria boca, porque terás de ser sua testemunha diante de todos
os homens, das coisas que tens visto e ouvido" (Atos 22:14-15).
Mais tarde,
quando Paulo voltava para Jerusalém, sobreveio-lhe um êxtase, e viu aquele que
lhe falava e que lhe disse: "vai,
porque eu te enviarei para longe aos gentios" (Atos 22:17,18,21). A Ananias, cujo temor bem podemos
compreender, comissionado por Deus para dar as boas-vindas ao notório
perseguidor da Igreja cristã, Deus também indicou a esfera de testemunho para a
qual ele havia chamado Paulo: "Mas o
Senhor lhe disse [a Ananias]: Vai, porque este é para mim um instrumento
escolhido para levar o meu nome perante os gentios e reis, bem como perante os
filhos de Israel; pois eu lhe mostrarei quanto importa sofrer pelo meu
nome" (Atos 9:15-16).
Paulo revelou outra faceta de seu chamado ao se
defender perante Agripa: "Ouvi uma
voz que me falava… Levanta-te e firma-te sobre teus pés, porque por isto te
apareci para te constituir ministro e testemunha, tanto das coisas em que me
viste como daquelas pelas quais te aparecerei ainda; livrando-te do povo e dos
gentios, para os quais eu te envio, para lhes abrir os olhos e convertê-los das
trevas para a luz e da potestade de Satanás para Deus" (Atos 26:14-18).
Assim, desde os primeiros dias de sua vida cristã,
Paulo não somente sabia que era um veículo escolhido por meio de quem Deus
comunicaria sua revelação, mas tinha uma idéia geral do que Deus havia
planejado para seu futuro: (a) Seu ministério o levaria para longe do lar; (b)
Ele teria um ministério especial entre os gentios; (c) Esse ministério lhe traria
grande sofrimento. Só aos poucos ele chegou a compreender que este chamado não
era tanto um novo propósito de Deus para sua vida, quanto a culminação do
processo preparatório iniciado antes de seu nascimento.
O Senhor havia dito aos seus discípulos que os postos de liderança no seu
Reino dependiam da soberana nomeação de seu Pai. "Quanto, porém, ao assentar-se à minha direita ou à minha
esquerda… é para aqueles a quem está preparado" (Marcos 10:40).
Paulo reconhecia esta verdade, mas só aos poucos ele chegou a um claro
entendimento do trabalho que Deus tinha para ele.
Só depois que os judeus rejeitaram de forma consistente sua mensagem é
que Paulo se devotou quase que exclusivamente aos gentios. Sua experiência em
Corinto chegou a uma fase decisiva. "Paulo
se entregou totalmente à palavra, testemunhando aos judeus que o Cristo é
Jesus. Opondo-se eles e blasfemando, sacudiu Paulo as vestes e disse-lhes.
Sobre a vossa cabeça o vosso sangue! eu dele estou limpo, e desde agora vou
para os gentios" (Atos 18:5-6).
Alguns anos após a sua conversão, este chamado
inicial foi renovado e confirmado pela igreja de Antioquia onde ele havia
trabalhado por um ano. "E, servindo
ele [os dirigentes] ao Senhor, e jejuando, disse o Espírito Santo: Separai-me
agora a Barnabé e a Saulo para a obra a que os tenho chamado" (Atos
13:2). De modo que o chamado geral se tornou específico, e eles
alegremente partiram, "enviados pelo
Espírito Santo". O primeiro passo no cumprimento da grande comissão do
Senhor e o começo do importante empreendimento missionário de amplitude mundial
havia sido realizado com segurança.
As missões do apóstolo Paulo
Sabemos que o conceito teológico de Missões é
tríplice: a igreja tem uma missão de adorar a Deus em espírito em verdade; tem
uma incumbência de edificar a si própria; e tem a grande comissão de
evangelizar o mundo. Como referencial de obreiro que Paulo foi, atuou nessas
três obras. Entretanto, vamos delimitar a prática missiológica paulina somente
às suas heroicas viagens missionárias.
O ambiente de trabalho missionário do apóstolo Paulo
foi o Império Romano. Antes propriamente de entrarmos em suas viagens, é
interessante ter em mente a cronologia da vida do Apóstolo aos gentios.
Vejamos:
5 d.C. Nascimento
em Tarso, da Cilicia
20-26 Estudos em Jerusalém
26-32 Estudos em Tarso
32-37 Conversão
na estrada de Damasco, (Atos 9)
37-39 Viagem
pela Arábia. (Gl. 1)
35-43 Prega em Tarso e
noutros lugares da Cilicia, (Atos 9 e
Gálatas 1).
43-44 Prega
com Barnabé em Antioquia, (Atos 11)
44-45 Viagem
a Jerusalém, durante a fome, (Atos 11)
45-47 Primeira
viagem missionária, (Atos 13-14)
47-49 Reside
em Antioquia da Síria, (Atos 11 )
49 Faz-se
presente ao concílio de Jerusalém. (Atos
15)
49-51 Segunda
viagem missionária, (Atos 15-18 )
51-56 Terceira
viagem missionária, (Atos 18-21)
56 Aprisionamento
em Jerusalém, (Atos 21)
56-58 Paulo
na Prisão em Cesaréia, (Atos 23 )
58-59 Viagem
a Roma, (Atos 27 )
59-61 Confinamento
em Roma, (Atos 26 )
61-64 (?)
Viagens à Espanha, Creta, Macedônia, Grécia, não mencionadas em Atos, embora
indicadas em outros documentos como no cânon muratoriano e nas epístolas de
Clemente. Algumas indicações destas viagens existem nas epístolas pastorais.
64-67 Execução em Roma,
durante as perseguições movidas por Nero.
1. A
PRIMEIRA VIAGEM MISSIONÁRIA
Em geral, Os Atos relatam três viagens missionárias de
Paulo. Essa narrativa às vezes é mui detalhada, às vezes resumida demais. O
principal é o seguinte: todas as três viagens começam e terminam na comunidade
gentio-cristã de Antioquia e não na comunidade judeu-cristã de Jerusalém (as
epístolas confirmam isso); geralmente Paulo dirigia-se primeiro a seus
patrícios mas bem depressa era obrigado a procurar os pagãos.
a) Resumo e itinerário
Primeira viagem missionária: Barnabé e Paulo vão aos gentios, Atos
13:1-14:29. Missão a Chipre, 13:4-12. Missão à Galácia, 13:13-14:28. Missão de
Pafos a Perge, 13:13. Missão a Antioquia da Psidia, 13:14-52. Missão a Icônio e
Listra, 14:1-18. Missão a Icônio, 14:1-7, Missão a Listra, 14:8-18. Retorno a
Antioquia da Síria, 14:19-28.
b) A Missão da Primeira Viagem
Lucas conservou-nos uma preciosa notícia sobre a organização da
comunidade de Antioquia e a liturgia (Atos 13: 1-3).
A primeira etapa da missão foi a ilha de Chipre, de onde Barnabé era
originário. O que interessa a Lucas é o primeiro contato do apóstolo Paulo com
um magistrado romano, Sérgio Paulo, senador, antigo pretor, muito conhecido por
inscrições. Sua família vinha de Antioquia da Pisídia. Na narração de Lucas, o
nome Paulo toma dali em diante o lugar de Saulo: não se pode deduzir daí que
Saulo tenha adotado o nome do seu ilustre convertido. Ter um duplo nome era
então corrente nos meios bilíngües, como o da família de Paulo. Junto ao governador,
Paulo teve de enfrentar um mágico de origem judaica, Elimas (At. 13,8).
O sucesso das ciências ocultas era grande na época; o que pode surpreender é
que um judeu as pratique. Segundo os Atos, Paulo terá outras
ocasiões de se confrontar com mágicos. Na sua carta aos Gálatas, ele classifica
as práticas de feitiçaria (pharmakeia) na categoria das obras
da carne, próximas da idolatria (Gl. 5,20).
Nas suas cartas, Paulo não faz alusão à missão de Chipre, para onde ele
não terá ocasião de voltar. Por que ele abandona a ilha sem a ter visitado
toda? Paulo que toma a frente da expedição em direção à Anatólia através dos
desfiladeiros do Tauro, covil de bandidos. Mais tarde Paulo fará alusão aos
perigos corridos na estrada (2Co 11,26). Primo de Barnabé, o jovem João
Marco teve medo da aventura e abandonou o grupo. Paulo não o perdoou, a
princípio.
a) O discurso de Antioquia da Psídia
Quando Paulo chegava numa cidade qualquer, ele
começava indo à sinagoga. Lá, ele podia entrar em contato com os judeus do
lugar e os “tementes a Deus” , pagãos atraídos para o judaísmo (At 13,26).
Como amostra da pregação de Paulo, Lucas nos conservou o discurso de Antioquia
da Pisídia (At 13,14-41). Esta era uma colônia romana, fundada por
Augusto para instalar aí os veteranos da legio V Gallica. O
Sérgio Paulo que se instalou aí devia ser um dos oficiais superiores desta
legião.
O discurso de Paulo não tem equivalentes nas Cartas,
mas é fácil encontrar certo número de temas pertencendo à apologética cristã
primitiva. Ele se coloca no contexto litúrgico tradicional: depois da leitura
de uma passagem da Lei e de outra, tirada da coletânea dos profetas, os chefes
da sinagoga convidam os visitantes a pronunciar algumas palavras de exortação.
Paulo não se fazia de rogado!
O texto de Lucas tem a marca da retórica da
época. Do ponto de vista das ideias, o discurso contém uma retrospectiva da
história de Israel até Davi.
Ainda que dirigido em prioridade aos judeus, o
discurso continha uma ponta universalista: a palavra da salvação vale para os
filhos de Abraão como para todos os que temem a Deus (v.26). Sobretudo,
ele esboçava uma crítica contra a Lei de Moisés, incapaz de trazer a salvação (v.38).
O sucesso junto aos não judeus apenas aumentou a irritação dos filhos de
Abraão. Para se justificar, Paulo declara: ”É a vós por primeiro que devia ser dirigida a palavra de Deus “(v.46)”.
Paulo será fiel a este por primeiro, como se vê pela declaração de princípio de
Rm 1,16: “ O Evangelho
é o poder de Deus para a salvação de todo aquele que crê, do judeu primeiro, e depois do grego”.
Para legitimar a sua passagem para as nações, Paulo
cita então uma passagem dos cantos do Servo, que tem uma grande importância na
apologética cristã primitiva: “Destinei-te
a seres luz das nações, a fim de que a minha salvação esteja presente até a
extremidade da terra” (Is 49.6). Este texto vale em primeiro lugar
para Cristo, mas Paulo o aplicou a si mesmo, como mostra Gl 1.15. Assim,
portanto, Paulo, servo de Cristo, descobre a sua missão ao reler a Escritura.
b) Pregação aos pagãos de Listra e retorno
Nas cidades que Paulo e Barnabé vão atravessar, o mesmo cenário se
reproduz. Como por exemplo, em Icônio (At 14,1-7), a pátria de santa
Tecla segundo os Atos de Paulo (acima, p.16s). Em 2Tm 3.13 também se
fala dos sofrimentos suportados por Paulo em Antioquia, Icônio e Listra. Nesta
última cidade, um incidente tragicômico manifesta bem a credulidade do povo e a
dificuldade para os Apóstolos de fazerem-se compreender por uma população pouco
helenizada. Uma cura provoca o entusiasmo e o povo logo quer oferecer um
sacrifício, como se Barnabé e Paulo fossem Zeus e Hermes em visita.
No caminho de volta, os apóstolos confirmam os
discípulos lembrando-os do sentido cristão da provação: “É necessário que passemos por muitas tribulações para entrar no Reino
de Deus” (At 14,22). Para dirigir as comunidades, Paulo e Barnabé
designaram-lhe anciãos (presbyteroi).
Este termo era tradicional nas comunidades judaicas para designar os
responsáveis. Não surpreende que tenha sido retomado pelos judeu-cristãos: em
Jerusalém, a primeira menção aparece já em At 11,30. Por outro lado, não
o encontramos nas cartas de Paulo, exceto nas epístolas pastorais, redigidas
provavelmente por um discípulo: os anciãos são instituídos por imposição das
mãos (1Tm 5,22). Enquanto
Paulo pudesse seguir por si mesmo a vida das congregações, a instituição dos
ministérios podia permanecer na sombra. Isto não impede que Paulo tivesse a
preocupação de apoiar aqueles que haviam aceitado tomar a direção das
comunidades, como em Tessalônica ou em Corinto.
Tendo partido de Antioquia com o apoio dos fiéis, os
missionários voltam para contar “tudo o
que Deus realizara com eles, e, sobretudo como tinha aberto aos pagãos a porta
da fé” (At 14,27). Atmosfera de alegria e de ação de graças, bem à
maneira de Lucas! Mas os obstáculos foram todos afastados?