Duas colunas distinguiam a Igreja cristã primitiva de qualquer outro sistema religioso. A primeira dizia respeito ao fundamental problema da autoridade. Em tal Igreja só existia uma autoridade final: a Bíblia, a Sagrada Escritura. Isto se depreende claramente dos ensinamentos de Jesus, de Paulo e da totalidade do Novo Testamento. Entre os leitores do presente tratado, muitos crerão que a Igreja primitiva estava certa em sustentar este conceito da Escritura; porém, até mesmo aqueles que não o aceitam, deveriam compreender que tal foi o conceito da Igreja, para assim entender intelectualmente a mesma.
Os primeiros cristãos criam que a Sagrada Escritura lhes dava uma autoridade externa ao âmbito do relativista, mutável e limitado pensamento humano. Assim, com esta visão da Palavra, tinham o que consideravam uma autoridade não humanista.
A outra coluna da Igreja primitiva que a diferenciava de todos os demais sistemas religiosos era sua resposta à pergunta: Como se achegar a Deus? Se Deus existe e é santo, perfeitamente santo, vivemos num universo moral. Se Deus não existe ou se é amoral ou imperfeito, vivemos, conseqüentemente, num universo relativo com relação à moral. Por outro lado, se Deus é perfeito, e mantém sua total perfeição, então, como é óbvio que nenhum homem é moralmente perfeito, todos eles estarão condenados.
A única coisa que poderia resolver este dilema, verdadeiramente básico, acerca de se o universo é moral ou amoral, seria o ensinamento da Bíblia e da Igreja primitiva. Tal ensinamento foi que Deus nunca diminuiu o nível de Suas normas, que Ele exige perfeição e que, portanto, Ele é completamente moral; e que, porém, por causa do amor de Deus, veio Jesus Cristo como Salvador, e realizou uma obra infinita e definitiva na cruz, de maneira que o homem já pode se achegar ao Deus totalmente santo e perfeito, apoiado nesta obra perfeita e consumada, pela fé e sem obras humanas relativas.
Estamos tão acostumados a falar disto dentro de um contexto religioso, que esquecemos das implicações intelectuais. Diremos de novo que, tanto se se crê no que a Igreja primitiva e a Bíblia ensinaram, como se não se crê, deve-se entender este ponto que estamos tratando, ou não se poderá compreender a tal Igreja, nem seu caráter distintivo.
Uma vez que se ensina a exigência por parte de Deus de perfeição total, se mantém a existência de um universo moral; e ao se ensinar a obra perfeita do Salvador, segue-se que não necessariamente todos os homens sejam condenados. Assim, qualquer elemento humanista e egoísta é destruído. Até mesmo se o cristianismo não fosse verdade, e nós cremos que ele o seja, esta seria uma resposta titânica; jamais nenhum outro sistema - seja religioso, seja filosófico - deu semelhante resposta.
Assim, pois, as duas colunas distintivas da Igreja primitiva eram um golpe combinado e completo contra o humanismo. A autoridade ficava fora da mutável jurisdição humana e assim, o acesso pessoal de cada indivíduo ao Deus eternamente santo se baseava, não nos atos morais ou religiosos relativos do homem, mas na absoluta e definitiva obra (e por ser Ele Deus, infinita) de Jesus Cristo. Tudo isto fazia que o homem fosse arrancado do centro do universo, donde havia intentado situar a si mesmo, quando se rebelou contra Deus na histórica queda no Éden, e destruía o humanismo, atacando-lhe no seu próprio coração.
Uma mudança apareceu nos tempo do imperador Constantino. Este fez paz com a Igreja, porém, começou a se intrometer nela. Esta mudança de direção progrediu lentamente no princípio, e logo com crescente velocidade. Tendo começado com Constantino, foi orientada em sua direção definitiva na época de Gregório o Grande; e não com respeito a questões incidentais, mas ao conceito básico. Tal mudança de direção destruiu as duas únicas colunas, às quais referimos mais acima. A Igreja viria a ser o centro da autoridade, no lugar da Palavra de Deus. Aqui é reintroduzido o elemento humanista.
Com relação à segunda coluna, é agora afirmado que a salvação, em vez de descansar somente sobre a completa obra de Cristo - isto é, sua obra consumada no espaço e no tempo, na história - se sustenta também nas obras humanas. No sistema católico-romano, estas obras se acham em três importantes âmbitos. O primeiro é o da missa. Não se considera já, na missa católico-romana, que Jesus Cristo consumou Sua obra no espaço de tempo histórico em que morreu na cruz, mas que Jesus Cristo está sofrendo constantemente. Ele sofre de novo, no sacrifício não sangrento, cada vez que se celebra uma missa. Porém há mais ainda: considera-se que aqueles que participam da missa estão oferecendo a Cristo em sentido ativo. Basta ler o missal católico-romano para dar-se conta da força disto. Cristo é oferecido pelo oficiante, porém quem participa da missa participa em seu oferecimento ativo de Cristo.
Achamos o segundo elemento humanista no âmbito da penitência. Esta é o sofrimento na vida atual, seja religioso, seja de uma maneira geral, para compensar a ausência de boas obras positivas. Assim, o sofrimento tem valor prático.
O terceiro elemento humanista diz respeito ao âmbito do purgatório, no qual o valor do sofrimento se projeta para o futuro. Sofre-se até merecer o mérito de Cristo.
Claro está, que desta maneira se destroem totalmente as duas colunas básicas da Igreja primitiva, e assim encontramos no sistema católico-romano um retorno ao que está especificamente relacionado com os demais sistemas humanistas.
O teólogo mais importante da Igreja Católica Romana é Tomás de Aquino. A leitura de sua Summa manifesta claramente a ênfase na mencionada síntese. Assim, o que vimos dizendo não é desconhecido na apresentação da própria Igreja Católica Romana. Tanto em sua arte, como em sua teologia, o catolicismo romano está edificado específica e centralmente sobre o intento de síntese entre os pensamentos humanista e bíblico.
Este elemento humanista do catolicismo romano explica o desenvolvimento da mariologia. Maria representa o mesmo. Tu, homem, individualmente não alcanças a vitória porém, Maria, sim, Maria, venceu. E, deste modo, temos um triunfo vicário do homem. Do mesmo modo, os santos católicoromanos representam também uma humanidade vicária, vitoriosa. O homem triunfou.
Seguindo a atual ênfase comum, que intenta apagar as diferenças entre as diversas religiões, se diz freqüentemente, inclusive por evangélicos, porém afetados por esta tendência, que o catolicismo romano adora ao menos, com toda segurança, ao mesmo Deus que a Igreja primitiva e a Reforma. Desgraçadamente, a resposta é: não. O catolicismo romano não adora ao mesmo Deus.
A entrada do elemento humanista no sistema católico fez com que Deus seja considerado como um Deus distinto do apresentado na Bíblia. O Deus bíblico é inteiramente santo. Ele não pode aceitar nem a menor imperfeição moral. Se o Deus totalmente santo quiser tratar com algum homem, depois da rebelião deste, sobre qualquer elemento da obra moral humana, só poderia condená-lo. Por isso, no sistema bíblico, Deus permanece inteiramente santo, e nós vivemos num universo absolutamente moral. No sistema católico-romano, Deus não é totalmente santo, já que aceita a imperfeição. Tal sistema afirma que somos salvos pelo mérito de Jesus Cristo, porém introduzindo o elemento humanista, porque o homem deve merecer o mérito de Jesus Cristo. A saída definitiva do purgatório se baseia no merecimento.
Este se obtém: 1) Pelas boas obras nesta vida, tanto religiosas como morais; 2) pelo valor dos sofrimentos experimentados na vida presente, que compensam o que faltou com relação às boas obras; 3) pelo valor do sofrimento que se experimenta no purgatório, o qual compensa o que faltou nos sofrimentos da vida na terra. Quando se tem alcançado isto, o mérito de Cristo é merecido. Tudo isso significa que o homem triunfou. Porém, quer dizer também que se adora a um Deus que não é completamente santo. Desde o ponto de vista bíblico tudo isso é, naturalmente, trágico; porém, para alcançar uma compreensão intelectual disso, deve-se entender também que significa que o cristianismo bíblico conduz finalmente, na realidade, a um Deus humanista, não absoluto. Com pesar, porém com uma finalidade definida, deve-se entender e afirmar que o Deus do sistema católico-romano não é o da Sagrada Escritura. Esse Deus é imperfeito; e o universo não é, portanto, absolutamente moral.
A Reforma não reconheceu nem ensinou nada novo. Isto é, nada novo em referência ao ensinamento da Igreja primitiva. A Reforma voltou simplesmente às duas colunas básicas a que nos referimos mais acima. A Palavra de Deus era a única autoridade, e a salvação tinha como base única a obra definitiva do Senhor Jesus Cristo, consumada na cruz. Tudo isso significava a remoção dos elementos humanistas. A Reforma foi revolucionária porque se apartou tanto do humanismo católico-romano, como do secular.
Para entender o que sucedeu depois, deve-se ter em conta que, há uns 250 anos atrás, o humanismo tinha se introduzido na Alemanha, e desta vez nas igrejas que haviam surgido da própria Reforma. Isto foi o nascimento do que na atualidade se chama usualmente liberalismo ou modernismo protestante. A alta crítica alemã e tudo quanto brotou dela até nossa geração, é simplesmente a entrada do pensamento humanista na Igreja protestante depois da Reforma, exatamente como, desde a época de Constantino em diante, o humanismo entrou na corrente da Igreja primitiva.
Nunca se enfatizará suficientemente que a alta crítica não sobreveio porque certos fatos a fizeram necessária, mas porque a filosofia humanista sobreveio primeiro. Aceitou-se em primeiro lugar a filosofia humanista, e logo foram adicionados "fatos" que pareciam poder prover uma base conforme a perspectiva humanista. A alta crítica não foi a causa, mas o resultado. Os teólogos protestantes de tal época permitiram a entrada do conceito humanista na Igreja protestante. As duas colunas básicas não humanistas da Igreja foram destruídas de novo. O que devemos entender agora é que, na nossa própria geração, tanto o humanismo do sistema católico-romano como o do protestantismo liberal não diminui, mas que é cada vez mais forte em ambos.
Por Francis Schaeffer